sexta-feira, 1 de setembro de 2000

Prefácio


A língua poética vive de equívocos, todavia a poesia não é jarra para a rosa, mas isso sabe António Martinho e, por isso mesmo, canta o corpo de forma segura do mesmo jeito que assinala lugares de onde água ou terra se prenderam por inefável modo de respirar. E deixa de todas elas, dessas paisagens que conheceu, uma marca, como a querer elevar o amor, por recantos que só a memória saberá descrever. Mas poesia é arte manifestada não por retrato ou pincel, antes pela palavra e, por essa razão, alguma coisa há-de manifestar em determinada construção verbal ou metáfora, dizendo que ali habita a poesia. O mesmo será dizer: algum indício revelará a sua configuração verbal.
Ora, exactamente na busca desse indício, proponho uma abordagem muito breve de “Não Seduzir”.
A sinceridade do poeta é a pele do poema, carne e sangue, por conseguinte recordo Claudel que disse que “essa sinceridade é, nele (poeta) mais ele do que ele próprio”. Mas se Claudel nos convida a pensar e a conhecer, Adolfo Casais Monteiro diz: “esta sinceridade é aquela que permite ao poeta não autobiografar-se, mas reconhecer-se, para lá de quaisquer incidentes, factos, acontecimentos: é aquela que lhe permite desfolhar as pétalas do insignificativo, até pôr a nu o cálice secreto do significativo, do impessoal”.
Querendo falar do livro, talvez pudesse falar de ritmo, do seu ritmo, mas prefiro abordar a melodia e, a melodia, apoia-se nos sons de determinada coloração, de uma especial intensidade. Cada palavra, no poema, possui determinada grandeza, determinada cor. Eis dois exemplos encontrados entre vários na poesia de António Martinho:

Se tu luzes no horizonte,
o Sol põe-se em pé,
as manhãs aparecem, muito contentes
e dançam todo o dia com as noites
e, distraídos todos,
inebriados pelo teu luzir,
atiram-se ao mar como se este fosse um bisonte amador.

Ou ainda:

Estão distantes os bons ventos do Sul,
que sopravam animados e animavam.

Agora, sopra uma brisa fria.
Faz suspirar e encolher os ombros
por não se ter um bom fogo
para junto dele se dar de beber aos corpos.

Abre-te, vento,
e sopra contente e doido
como antes
e agita os seres e o mundo e,
nesse agitar,
não te esqueças dos meus cabelos.

Aqui algumas palavras carregadas de cor (sol, sul, fogo, noites, mar) ao mesmo tempo outras, imbuídas de musicalidade (dançam, sopravam, animavam, agita), contribuem de forma singular para a criação de um clima, de uma ambiência, que assinalam uma identidade.
Se o poeta pretende que a palavra (no poema, evidentemente) tenha apenas um determinado sentido, noutras deseja que ela se desdobre em mil sugestões, como nos ensinou Malarmé. E, se do que foi dito antes, podemos concluir que o essencial da poesia, na medida em que ela é som, reside na sua força de expressão ritmo-melódica, veremos ainda que, enquanto sentido, o que importa nela é a imagem, cheia de acontecimentos, plena de vibrações. O conteúdo do poema é o estado de alma do poeta, vejamos:

Lamento a sobriedade das palavras que escrevo,
a seriedade do meu gesto,
a franqueza com que envolvo os meus actos.

Quem suspira mais alto do que eu?
Quem se transforma em pequeno pássaro
para eu, com a minha grande boca,
o agarrar pelas asas,
em pleno ar,
como as pombas atrás das folhas de Outono?

Ainda um outro exemplo:

Quando estava para beber a última gota,
saiu dela uma alma cheia de abnegação.
Quis saber se eu bebia absinto para me sentir homem.

Toda a falsa poesia se atraiçoa porque a sua forma verbal não passa de mera candeia, muito longe da claridade poética portadora de identidade, como caminho verdadeiro para a descoberta da interioridade. Por essa razão a inteligente atitude de António Martinho neste primeiro livro, não poderia ser outra senão a de eleger novas formas para a sua comunicação, por conseguinte direi, novos símbolos se potencializam para, e até, se converterem em metáfora, pois a metáfora em si já é, como ensina o filósofo, um poema breve ou poema em miniatura.

ivo machado
Praia do Corgo, 25 de Abril de 2003

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